Por Bruno Paes Manso - O Estado de S. Paulo
O esquema de ataque aos cofres públicos instalados nas instituições públicas do Amapá desviou pelo menos R$ 1 bilhão nos últimos dez anos e continua funcionando nos dias de hoje. Os números e as conclusões são do inquérito final da Operação Mãos Limpas da Polícia Federal, desencadeada em setembro de 2010. As investigações, os documentos, vídeos, fotos e escutas foram analisados por policiais e peritos ao longo deste ano e mandados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
As mais de 2 toneladas de material apreendidas mostram irregularidades grosseiras, com indícios de crimes que revelam um ambiente de impunidade, no qual políticos, autoridades e empresários não pareciam se importar em deixar rastros. São desde saques milionários e mensais de verba pública tirados na boca do caixa a superfaturamentos em todos os contratos analisados do governo estadual e da Prefeitura de Macapá.
Suspeitas do assassinato de um policial federal e de pedofilia também apareceram na investigação. O Estado teve acesso ao inquérito e percorreu o Amapá na semana passada para compreender a dimensão e os efeitos dos desmandos.
De acordo com o inquérito da PF, a inteligência do esquema consistiu principalmente em envolver integrantes de todas as instituições amapaenses, distribuindo cargos e dinheiro do Orçamento estadual. A base dos recursos do Amapá - R$ 7 em cada R$ 10 - vem de repasses federais.
Foram encontrados documentos que apontam envolvimento de integrantes do Tribunal de Justiça do Amapá, da Procuradoria-Geral do Estado, do Ministério Público, passando pelos deputados da Assembleia Legislativa, funcionários de todos os escalões dos Executivos estadual e municipal, incluindo governador e prefeito, sem falar em uma ampla rede de jornalistas.
"Sempre houve no Amapá a chamada harmonia entre os Poderes. Instituições encarregadas de se fiscalizar atuam em parceria e ninguém fiscaliza ninguém", diz o funcionário público Ednaldo Batista, organizador do Movimento Mãos Limpas.
Focos
No decorrer das investigações, foram apurados quatro focos principais de desvios. No Tribunal de Contas do Estado (TCE), órgão encarregado do controle e da fiscalização dos gastos do Legislativo e do Executivo, os desmandos levaram a desfalques de mais de R$ 300 milhões, segundo o inquérito da PF. Entre janeiro de 2005 a junho de 2010, foram feitos 7 mil saques em cheques que somaram R$ 190 milhões, distribuídos sem que houvesse a prestação de contas exigidas em lei. O destino do dinheiro ainda é objeto de investigação dos federais.
Com o TCE se eximindo das suas tarefas, deputados da Assembleia e funcionários do governo estadual e da Prefeitura de Macapá puderam agir sem freios. O inquérito calcula que o total de desvios entre os deputados estaduais chegou a R$ 300 milhões. Parlamentares abusaram do uso de verbas indenizatórias, de gastos com passagens e diárias, justificadas por meio de prestação de contas irregulares.
Só uma agência de viagens, a Martinica, cujo diretor fora sócio do presidente da Assembleia da época, Jorge Amanajás, recebeu mais de R$ 28 milhões em verbas de passagens da Casa.
Lavagem
Mais R$ 400 milhões foram desviados em contratos supostamente fraudulentos feitos pelo Estado e pela prefeitura. Segundo a PF, uma empresa de ônibus municipal, a Marco Zero, foi criada para lavar dinheiro dos desvios. Em um dos contratos irregulares investigados - com as empresas de segurança privada Serpol e Amapá Vip, que prestavam serviços para a Secretaria Estadual de Educação -, foram desviados perto de R$ 70 milhões em seis anos. As irregularidades afetaram compras de remédios, consertos de equipamentos hospitalares, verbas para programas sociais, reformas em escolas, aluguel de veículos e compra de combustível.
As consequências são vistas por todo o Estado, repleto de esqueletos de obras paralisadas por causa das irregularidades contratuais e com serviços deficientes na educação e na saúde. É exemplar o caso do Hospital Metropolitano, em Macapá, obra parada pela Justiça desde 2004, em um Estado que sofre com déficit de leitos.
Planejamento
Para evitar vazamentos e conseguir prender políticos graúdos no Amapá, a deflagração da Operação Mãos Limpas, ocorrida em setembro do ano passado, precisou alugar um navio com capacidade para 700 policiais federais, que viajaram 22 horas pelo Rio Amazonas até desembarcar em Belém, numa espécie de Dia D.
As tábuas de maré do Amazonas, que quando secam dificultam o trânsito de navios em Macapá, foram exaustivamente estudadas para evitar o encalhe.
Foram dois meses de planejamentos, a um custo que alcançou mais de R$ 1 milhão. Em operações anteriores, como a Pororoca (2004) e Sanguessuga (2006), pessoas que seriam presas souberam que policiais federais chegavam à cidade por meio de informações repassadas do Aeroporto de Macapá.
Dessa vez, para evitar novas fugas, dois bloqueadores de celular foram instalados no navio dos federais para impedir qualquer tipo de comunicação. Vindos de Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará e Brasília, os federais foram informados em um primeiro momento que cumpririam ação contra desmatamento na Amazônia. Só souberam o real objetivo da missão horas antes de desembarcarem no porto de Macapá.
Foram alugados 140 carros particulares em Macapá, que esperaram estacionados a deflagração das ações por 45 dias. Para despistar os funcionários do porto, os federais se passaram por distribuidores de bebidas. Na hora do desembarque, às 2 horas da manhã do dia 10 de setembro do ano passado, um vigia do porto e um agente da inteligência da polícia militar foram dominados para impedir que outras pessoas soubessem da movimentação.
No total, foram deflagradas 18 prisões temporárias e 8 preventivas, além de 184 mandados de busca e apreensão. Esses documentos foram analisados ao longo do ano passado e sustentam parte do inquérito final da PF que atualmente se encontra no Superior Tribunal de Justiça. Hoje, todos estão soltos.
Membro do TCE é suspeito de chefiar esquema
Nas cerca de 5 mil páginas do inquérito da Polícia Federal, são descritas as ações de um personagem capaz de chocar até os mais acostumados aos escândalos políticos. José Júlio de Miranda Coelho, ex-comandante da Polícia Militar e ex-presidente da Assembleia Legislativa por dois mandatos seguidos nos anos 9o, foi presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE) entre 2001 e setembro de 2010, quando foi preso na Operação Mãos Limpas. Após deixar a prisão em março, voltou a atuar nos bastidores políticos.
Além de ser apontado como o chefe dos desvios que totalizaram R$ 190 milhões, na casa de Miranda foi encontrada a arma do policial federal Sandro Guilherme da Silva Cunha, morto em 2002 em Laranjal do Jari. A arma sumiu após o crime.
Miranda também é acusado de sustentar uma família pobre de Macapá para manter relações com meninas de 13 e 16 anos. Em escutas contidas no inquérito, o ex-presidente do TCE foi flagrado em conversas de teor sexual com as crianças.
Na lista de bens de Miranda feita pela PF, há em nome dele, de parentes e de supostos laranjas uma lista de mais de 100 imóveis, incluindo 8 casas, 37 apartamentos (um deles na Rua Oscar Freire, em São Paulo), 10 flats, 18 salas comerciais, 10 prédios, 42 terrenos e um Hotel Formule 1 em João Pessoa. O ex-presidente do TCE também era proprietário de uma frota de luxo, formada por uma Ferrari e um avião, avaliados em cerca de R$ 4 milhões, entre outros veículos.
Esquema
Os federais relatam que Miranda mantém sua influência política. O motivo foi a contratação em maio pela Assembleia de três pessoas apontadas no inquérito como laranjas com papel importante no esquema do ex-presidente do TCE.
O inquérito conclui: "A nomeação de pessoas próximas a Júlio Miranda, por parte do atual presidente da Assembleia Legislativa do Amapá, deputado Moisés Souza, é emblemática. O episódio mostra, além da força política do conselheiro, as ligações suspeitas existentes entre membros dos poderes constituídos do Amapá".
O Estado falou com assessores de Miranda no gabinete que ele mantém no TCE, apesar de ter sido afastado pelo Superior Tribunal de Justiça, mas não obteve respostas.
Parentes de governador são citados no esquema
A mulher do atual governador do Amapá, Cláudia Camargo Capiberibe, foi assessora especial do presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE), José Júlio de Miranda Coelho, acusado no inquérito da Polícia Federal de ser um dos articuladores dos desvios de recursos públicos no Estado.
De acordo com os documentos, os policiais federais concluíram que o emprego de parentes e aliados em diferentes instituições do Estado era uma das maneiras de manter a harmonia entre os Poderes e barrar as fiscalizações necessárias.
Em uma lista apreendida pelos policiais na casa de Miranda, com o nome de pessoas empregadas no gabinete da presidência do TCE, está citado um primo do governador, Jorney Souza Capiberibe, com a indicação do cargo - assessor especial - e o salário de R$ 6,1 mil. O nome do governador Camilo Capiberibe aparece ao lado, entre parênteses.
É difícil saber até onde vai a relação de parceria e harmonia entre os Poderes no Amapá. No dia seguinte à Operação Mãos Limpas, mesmo depois da prisão do governador Pedro Paulo Dias e de os holofotes da imprensa nacional focarem o Estado, o presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Dôglas Evangelista Ramos, assumiu o governo e logo em seguida tomou uma decisão que o pôs sob suspeita de beneficiar o suposto esquema de desvio de verbas investigado pela Polícia Federal.
Segundo o inquérito, o desembargador autorizou o pagamento de um precatório mal documentado, que contou com participação decisiva da Procuradoria-Geral do Estado, para beneficiar empresa que participava de desvios de dinheiro público.
De acordo com as apurações, a procuradora-geral do Estado, Luciana Lima Marialves de Melo, também participou das irregularidades. O inquérito descreve que ela concordou que fossem pagos R$ 7 milhões a uma empresa de segurança e transportes (Setra) em litígio com o governo, apesar do protesto de outros procuradores, para quem as assinaturas dos documentos apresentados eram falsas.
Ramos assinou a liberação do pagamento da primeira parcela de R$ 300 mil antes mesmo da homologação judicial. O inquérito indica que entre os advogados da Setra havia laranjas de Julio Miranda e funcionários do TCE.
Outro lado
O governador Camilo Capiberibe afirma que sua mulher, Cláudia, foi nomeada assessora da presidência em 2004 quando ele ainda não tinha mandato. Diz também que a mulher deixou o posto em dezembro de 2010, quando ele assumiu o governo. Capiberibe sustenta também que não teve influência na nomeação do primo.
Ramos afirma que autorizou o pagamento do precatório com base em parecer da PGE e que a medida beneficiou o Amapá. O Estado tentou contato com a ex-procuradora, mas ela não respondeu às ligações.
9 de outubro de 2011
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