No dia-a-dia de trabalhadores que vivem da agricultura familiar, em um assentamento rural, um grupo de crianças e adolescentes aprende de Beethoven e Chopin à Vinícius de Morais e Tom Jobim. Esse lugar é Bom Jesus, no município de Tartarugalzinho, norte do Amapá, palco de ensaio e apresentação da Orquestra Sinfônica Florescer, formada por filhos de trabalhadores rurais que começam a mudar seus destinos de futuros agricultores e descobrem a arte através da música. São 70 crianças de 8 à 17 anos que, na folga da escola, por algumas horas trocam a enxada por flautas e outros instrumentos de sopro e corda vivendo uma experiência nunca imaginada por nenhum dos moradores do assentamento.
A única pessoa que sonhou com o que hoje é realidade, foi a enfermeira Íria Sá, que despertou nas crianças a curiosidade, e agora paixão, pela música instrumental, dando um outro sentido às horas que passam na improvisada escola de música. Íria trouxe para atualidade seu antigo gosto pela música que começou quando estudou piano, ainda adolescente. Ela, que trabalha no único posto de atendimento de Bom Jesus, cansou de ver crianças virando jovens e, ao terminar o ensino fundamental, se acomodarem sendo pais prematuramente seguindo a sina herdada de lavrador e dona de casa, sem qualquer perspectiva de mudança cultural e profissional.
Foi essa preocupação com a pobreza aliada à falta de opção que levou Iria a sonhar em mudar o destino das crianças. Era o início, há dois anos, da realização do sonho da Orquestra Florescer. O décimo terceiro salário de Iria foi usado para que as flautas fossem compradas e a iniciação musical das crianças acontecesse com o que ela aprendeu nas aulas de piano. “Aos poucos fui conquistando os pequenos, despertando neles o interesse pela música instrumental, não foi fácil, todos sabem que em lugares onde moramos a preferência é por brega, melody e pagodes, o que não é proibido, mas hoje eles curtem também música clássica e MPB”, conta Iria.
Casada e com três filhos saindo da adolescência, Íria os mandou para Macapá onde estudam e aprendem técnicas musicais na Escola Walkíria Lima. Nos fins de semana eles retornam para Bom Jesus e ensinam o que aprenderam para a mãe, que repassa aos alunos. Desde 2009 duas turmas foram formadas e hoje, os primeiros são responsáveis também por ensinar os mais novos. “Todos estamos aprendendo, é uma via de mão-dupla muito importante, uma experiência única em uma vida educar o ouvido dessas crianças. Despertar nelas o talento e vê-las tocando não tem preço, me emociono de verdade”, disse a professora.
A emoção não é particularidade de Iria, na primeira apresentação para uma platéia que não era somente de familiares, mas com autoridades como o governador Camilo, o prefeito de Tartarugalzinho Rildo e secretários, eles deram a mensagem emocionante. Foi durante uma ação inédita no interior do Amapá que vem coincidentemente reforçar o trabalho de Iria, a inauguração da Casa de Cultura de Tartarugalzinho. Com espaço para aulas de artesanato, canto, dança e música, a direção pretende institucionalizar iniciativas como a de Bom Jesus, trazendo crianças e adolescentes para a Casa. Os pequenos músicos inauguraram o local vestidos com a primeira doação: as camisas. Empolgados, tocaram sinfonias famosas e se esforçaram no canto do coral, que desafinou com elegância e compreensão da platéia por conta da mudança de voz de alguns vocais. Do ensaio na única escola de ensino fundamental do assentamento, até agora essa foi a apresentação mais importante da Orquestra e conseguiu um feito especial, que é a admiração dos que os assistiam pela primeira vez e a garantia de apoio do Governo do Estado.
Um salto importante para quem não imaginava um futuro diferente da rotina de campo, enxada e feiras. A professora tem outro desejo além de mais instrumentos e uma sala acústica a conquistar, ela quer que os alunos que estão terminando a 8ª série tenham uma cama em casas de família em Macapá para que continuem o segundo grau e estudem música. Uma conquista aparentemente fácil para quem realizou um sonho que parecia impossível: formar uma orquestra sinfônica em um assentamento nas brenhas de Tartarugalzinho, um município que pode se tornar referência pela experiência em meio à invasão de modismos instantâneo que alucinam ouvidos desavisados.
Por Mariléia Maciel
25 de maio de 2011
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