Dependendo da fase da lua e da estação do ano, a paisagem de Macapá, capital banhada pelo Amazonas, pode se transformar. Quando a maré está alta, as ondas fluviais chegam a invadir as calçadas. Isso ocorre por influência do Oceano Atlântico, que no Amapá se encontra com o maior rio do mundo. Quando a maré seca, surge uma lama espessa e escura formada pelo solo do rio. Na lama que beira a orla se joga futebol, conhecido como futelama. Ainda se brinca de peteca, queimada, entre outras atividades. Em sentido figurado - o que não diminui a sujeira -, na lama amapaense também se faz política.
No dia 10 de setembro, a modalidade de política na lama ganhou destaque nacional depois da Operação Mãos Limpas da Polícia Federal. Dezoito pessoas foram presas, entre elas o governador candidato à reeleição e o ex-governador que concorria ao Senado, ambos derrotados nas urnas. Os resultados desses desmandos estavam nas ruas. Perto de 170 obras inacabadas, crianças saindo mais cedo das escolas por falta de merenda e bebês morrendo na maternidade com equipamentos quebrados. O Rio Amazonas, que era limpo antigamente, hoje recebe todo o fluxo de esgoto sem tratamento no Estado.
Nesse ambiente de pântano contaminado, as eleições do último domingo ocorreram em clima acirrado. Boa parte da população depende de empregos públicos, o que tornou a corrida eleitoral uma briga de foice por futuros salários. O inimigo, nessa luta, faz a regra e quem não desce ao pântano para brigar corre o risco de ficar desempregado.
Na Baixada do Ceará, favela de palafitas de Macapá, às vésperas da eleição, a reportagem conversou com mães que ganharam pares de chinelos para os filhos em troca de votos. Foram apreendidos ainda dinheiro vivo, moedas, combustível e cestas básicas em galpões. Um candidato tinha sido preso por pedir votos ameaçando eleitores com revólver. A situação só não foi pior este ano por causa da presença ostensiva de 200 agentes da PF nas ruas do Amapá.
Como não poderia deixar de ser, as eleições locais também tiveram os chamados candidatos fichas-sujas. Seis deles disputaram o pleito. Podiam concorrer, mas se vencessem, para assumir precisariam ainda ganhar uma nova batalha jurídica nos tribunais superiores. A decisão dos tribunais de barrar concorrentes em um dos Estados brasileiros onde política desce aos níveis mais baixos desnudou alguns problemas da Lei da Ficha Limpa. Os magistrados, que às vezes decidem em cima de casos mal investigados, ganharam peso no processo político-eleitoral - enquanto os votos perderam força.
Luta sem equilíbrio. Antigo território federal, o Amapá só virou Estado depois da Constituição de 1988. Tem 75% da área coberta pela floresta amazônica quase integralmente intocada. A população é menor que a de Campinas. São menos de 700 mil moradores, o que facilita a vida dos gestores para administrar um Estado rico em minério e grande diversidade de peixes. Mas que mantém a maioria dos habitantes na miséria.
A incompetência e má-fé dos políticos tem muito a ver com o subdesenvolvimento local. Nos últimos seis anos, nas operações policiais, quatro secretários estaduais da Saúde foram presos. Eram rotina falcatruas em contratos de material escolar, remédios, merendas, consertos de equipamentos hospitalares, sem falar nas fraudes em licitações. O governo e as instituições amapaenses haviam se tornado organismos doentes em fase final de metástase, infeccionados pela disputa política. Os desvios de dinheiro público eram estimados em R$ 300 milhões, 150 vezes mais do que o orçamento do Estado em pesquisa e tecnologia.
O avanço rápido dessa infecção que deteriorou as instituições coincidiu com o período no qual os magistrados passaram a determinar os rumos políticos do Amapá e os eleitores perderam força na definição de quem deveria comandar o Estado.
Protagonismo. Os juízes passaram a ter mais influência na cena política amapaense depois da eleição de 2002. No dia do pleito daquele ano, correligionários do senador João Capiberibe (PSB) e da mulher, a deputada Janete Capiberibe, principais lideranças do grupo que governara o Amapá por oito anos, foram pegos em flagrante em uma cena bizarra. Numa batida, autoridades federais apreenderam material de boca de urna da campanha socialista, dinheiro, combustível, botijões de gás e uma relação de mais de 5 mil nomes em uma casa onde estavam integrantes da campanha eleitoral do grupo. Poderia ser mais um entre tantos episódios grotescos da guerra na lama amapaense. Mas esse caso seria diferente porque dois depoimentos acusando os culpados apareceram. Quase três semanas depois da batida.
As agricultoras Rosa Saraiva dos Santos e Maria de Nazaré da Cruz Oliveira, moradoras de casas de palafitas em um bairro pobre de Macapá, denunciaram em cartório integrantes da campanha dos Capiberibes de terem pago a cada uma R$ 26 em duas parcelas em troca de voto. R$ 20 pelo voto e R$ 6 pelo lanche. Os nomes delas constavam da lista apreendida no comitê. Seria o começo do inferno astral do casal e do grupo de oposição ao novo governo que se instalara. "Meu maior erro foi não ter considerado o caso seriamente. As acusações eram tão esdrúxulas que não dei importância. Quando corri atrás, era tarde demais e acabei cassado", disse Capiberibe, conhecido como Capi.
Os reveses na Justiça começaram a se suceder nos anos que se seguiram, condição que fragilizou politicamente os até então poderosos socialistas amapaenses. Ao mesmo tempo, o novo grupo instalado no poder se fortalecia a ponto de quase conquistar hegemonia política no Estado. Em 2005, Capi e a mulher foram cassados. O senador Gilvam Borges (PMDB), primeiro suplente e maior aliado do senador José Sarney (PMDB), assumiu a vaga. Capi e Janete tentaram voltar nas eleições deste ano. Na véspera da votação, ainda por causa da suposta compra de votos, eles tiveram os registros indeferidos pelo TSE. Mesmo assim, no último domingo, estiveram entre os mais votados e se elegeram. Capi ficou em segundo para o Senado. Janete foi a federal campeã de votos. Para assumir, no entanto, vão depender da análise dos magistrados. Como nos últimos oito anos, caberá a eles bater o martelo sobre o futuro político do Amapá.
Sobram ironias no processo que levou para os frios corredores dos tribunais o destino político do Amapá. A primeira delas surge da própria acusação confusa que motivou todo o rebuliço político e jurídico no Estado. No dia 1º de outubro, antevéspera de eleição deste ano, o Estado teve acesso a um depoimento dado no Ministério Público Federal do Amapá por um ex-funcionário de Gilvam Borges que acusava o antigo patrão de tê-lo contratado para arrumar os depoimentos que respaldariam as acusações contra os Capiberibes em 2002.
Contradições. A reportagem entrevistou a testemunha no sábado antes da eleição. Em uma casa de fundos no Jardim Felicidade, bairro na periferia de Macapá, o cinegrafista Roberval Coimbra Araújo tinha documentos para respaldar alguns fatos que narrava. Para outras acusações, não apresentou provas.
Coimbra contou que, em 2002, trabalhava em um programa de rádio quando foi chamado por um colega para "fazer um serviço" para o senador Borges. Na "Operação Cavalo Doido", ele teria a tarefa de localizar pessoas cujos nomes estavam na lista apreendida pelas autoridades durante a batida policial. Encontrou Rosa e Nazaré em suas casas de palafita. "Quando entrei, falei: ‘Vim aqui para mudar as suas vidas’", disse.
Ele ainda afirma que ofereceu às duas casa e dinheiro, sem especificar a quantia. A oferta seria bancada por Borges. Levou as testemunhas para uma casa de fundos da TV Tucuju, de propriedade de Borges, onde elas ficariam 30 dias escondidas até registrarem depoimentos em cartório. As duas confirmaram na Justiça terem recebido os R$ 26 pelo voto. Esses depoimentos, segundo Coimbra, renderam dois terrenos no Jardim Marabaixo III. Depois, elas se mudaram para casas de alvenaria no Jardim Marco Zero. Os dois lugares são bairros pobres de Macapá.
O suposto aliciador disse ainda ter recebido pelo serviço. Foi contratado como cinegrafista em janeiro de 2003 na TV Tucuju - pouco mais de um mês depois da armar a suposta fraude. Com registro na carteira de trabalho. A bronca com Gilvam Borges veio mais tarde, em 2005. Coimbra teria a promessa de receber um cargo no Senado quando Borges assumisse a vaga. "Fui falar com o Geovani (irmão de Gilvam). Ele foi grosseiro e disse que não iria ‘ficar na minha mão’", diz. Pouco depois, Coimbra foi demitido, como mostra seu registro profissional.
Geovani Borges, irmão de Gilvam e suplente na chapa do senador, diz que a contratação e demissão de Coimbra ocorreram por questões internas da televisão. Nega todas as acusações feitas por ele e afirma que o caso já foi analisado pelos tribunais superiores. E levanta suspeitas pelo fato de o depoimento de Coimbra ter sido prestado no MPF pouco antes da eleição. "Vamos processar esse senhor por calúnia", diz.
Mas ironia das ironias em todo esse processo são os efeitos colaterais provocados pela interferência pesada dos magistrados no panorama político-eleitoral amapaense. Uma das causas da roubalheira que nos últimos oito anos contaminou os poderes locais, segundo os policiais, esteve ligada justamente à falta de fiscalização por parte de instituições que deveriam se controlarem.
Essa omissão começou no governo de Waldez Góes (PDT), que assumiu em 2002 firmando um pacto de não agressão que amenizava a fiscalização da imprensa, tribunal de contas e Legislativo. O fortalecimento do chamado "grupo da harmonia" nos anos que se seguiram danificou os controles institucionais, permitindo que todos pudessem tirar uma lasquinha. As derrotas jurídicas sucessivas das forças de oposição tornaram essa fragilidade ainda mais acentuada. Se a briga de foice antigamente era equilibrada, a peleja passou a ter um combatente superpoderoso - o grupo da harmonia - e outro raquítico - a oposição. Desequilibrando a luta política, é como se os magistrados, vindos de fora do processo, sugerissem um remédio para infecção que acabasse matando os anticorpos e acelerando a propagação da doença.
Passadas as eleições, a política no Amapá continua em suspense, aguardando decisão da Justiça sobre os fichas-sujas. Enquanto a reportagem esteve em Macapá, o rio secava de manhã e as instituições permaneciam ameaçadas. Com a tragédia foi possível perceber que a escolha da profilaxia adequada contra o caos é mais complicada do parece.
Fonte: Estadão
10 de outubro de 2010
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