Servidores pagaram empréstimos com desconto em folha, mas o ex-governador não repassou o dinheiro aos bancos para quitá-los. Foto: Marcello Casal Jr./ABR |
“Recebia telefonemas semanais do banco, e não adiantava dizer que tinha quitado as parcelas ou mostrar ao gerente meu contracheque com os descontos”, comenta. “Para fazer transações bancárias, tive de usar a conta de minha mulher. Passei todo esse tempo sem poder comprar nenhum eletrodoméstico em parcelas. Tudo por conta de um empréstimo que eu pagava em dia, só que o governo decidiu embolsar o dinheiro e não quitou nada.”
A situação enfrentada pelo professor é apenas um exemplo do ocorrido com mais de 7 mil servidores públicos do Amapá. A dívida do governo estadual com bancos e seguradoras de saúde é estimada em 74 milhões de reais – -valor nominal, sem a incidência de juros. “Desde que assumi o governo, em janeiro, estamos renegociando essa dívida com as instituições financeiras para limpar o nome dos servidores”, afirma o governador Camilo Capiberibe (PSB). “Entre julho de 2009 e dezembro de 2010, o estado simplesmente deixou de honrar os compromissos. Além de acumular- -essa dívida gigantesca, os ex-governadores Waldez Góes (PDT) e Pedro Paulo Dias (PP) sujaram o nome de mais de um quinto dos 25 mil servidores. Diversos funcionários entraram com ações por danos morais contra o estado.”
O caso, avalia o governador, abalou a frágil economia local. Num estado com mineração incipiente e pouquíssima produção agrícola, o que sustenta a economia são os salários pagos ao funcionalismo, que correspondem a cerca de um terço do PIB local. Hoje, estima-se que ao menos 46% da riqueza do Amapá depende diretamente do setor público. Com boa parte dos servidores estaduais sem acesso a crédito, o impacto foi sentido.
Há um ano, Waldez Góes foi preso pela PF, acusado de integrar uma quadrilha que desviou milhões dos cofres públicos. Foto: Marcello Casal Jr./ABR |
A mesma sorte não tiveram milhares de outros servidores com empréstimos em instituições que não abdicam de cobrar juros do governo. Em maio deste ano, os bancos BMG, Matone, Bom Sucesso, Cruzeiro do Sul, Banco Industrial do Brasil, Banco do Brasil e Caixa voltaram a negociar com o estado.
Desde janeiro, a Polícia Civil investiga o caso para descobrir aonde foram parar esses recursos e quem foram os gestores responsáveis pela apropriação das consignações. A Procuradoria- Geral do Amapá também criou, em abril deste ano, o Núcleo Pró-Ativo, cujo objetivo é propor ações para responsabilizar os envolvidos. “Estamos verificando qual foi o prejuízo causado ao Erário com a apropriação indébita desses recursos, como os juros que o estado tiver de arcar com os bancos e as eventuais indenizações que for condenado a pagar”, diz Márcio Alves Figueira, procurador-geral do estado. “Devemos concluir a investigação dentro de 30 dias. Aí será possível entrar com as ações de improbidade administrativa contra os gestores.”
O rombo deixado pelas administrações anteriores, na verdade, é muito maior que o dos empréstimos consignados. De acordo com Capiberibe, o estado também descontou contribuições previdenciárias e Imposto de Renda (IR) da folha de pagamento sem repassar os valores para o INSS, a previdência estadual e a Receita Federal. “Nesses casos, 100% dos servidores foram atingidos.” Apenas a dívida com a previdência estadual é de cerca de 426 milhões de reais. Os débitos de IR ainda não foram calculados, mas o governo estima ser superior a 100 milhões de reais, sem levar em conta os juros do período. “Entre janeiro e agosto deste ano, repassamos para a Receita 40 milhões de reais em Imposto de Renda. No mesmo período do ano anterior, o governo repassou 4 milhões, um décimo do que deveria.”
O atual governador Camilo Capiberibe tenta renegociar os débitos. Herdou ainda um rombo de 426 milhões de reais na Previdência. Foto: Dida Sampaio/AE |
Em um único contrato da Secretaria de Educação do Amapá, a Operação Mãos Limpas da Polícia Federal encontrou três fraudes grosseiras na licitação, que resultaram num desvio milionário de dinheiro público. O fornecimento de filtros para os alunos carentes de três escolas estaduais tinha embutido um superfaturamento de 2.763%. O presidente da “comissão de licitação” da Secretaria de Educação do Amapá, Roberto Luiz Amaral da Rocha, era também o gerente-comercial da empresa Top Line, a vencedora do contrato para fornecer 200 filtros.
Um relatório da Operação Mãos Limpas revelou ainda que o ex-governador do Amapá, Pedro Paulo Dias, estava negociando uma doação de 30 milhões de dólares do Grupo Salim, que tem sede na Ásia, para o financiamento de sua fracassada campanha à reeleição. Em troca, o político facilitaria a legalização de vastas fazendas a serem adquiridas pelo grupo de estrangeiros no estado. As suspeitas estão amparadas em gravações de conversas telefônicas autorizadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo relatos da imprensa local, o inquérito da PF está concluído e deve ser despachado para o Ministério Público Federal nos próximos dias.
“Assumi um estado à beira da falência”, queixa-se o atual governador. “Tive de acabar com 4 mil contratos de trabalho temporários e outros mil de cargos de confiança. Até agosto, pagamos mais de 231 milhões de reais em dívidas herdadas da gestão passada. Só conseguimos investir 69 milhões com recursos próprios.” O que salva esse turbulento início de governo, emenda Capiberibe, são as verbas federais previstas pelo PAC para investimentos em saneamento e habitação. “O governo anterior executou apenas 10% do orçamento disponível. Em oito meses de gestão, aplicamos outros 10%.”
O Ministério Público Estadual também investiga a moratória do estado com as consignações e os recursos previdenciários. “Devemos concluir as investigações relacionadas aos empréstimos dos servidores em um mês. A expectativa é apresentar ações na Justiça no mais tardar até o fim de outubro. Por enquanto, não temos indícios de que o dinheiro foi desviado ou usado pelos gestores em benefício pessoal, mas a prática não deixa de ser ilícita e os responsáveis por essa apropriação indevida do pagamento das parcelas podem ser processados por improbidade administrativa e, dependendo do caso, responder a processos penais por crimes como prevaricação e apropriação indébita”, comenta o procurador de Justiça Márcio Augusto Alves. “Haroldo Vitor, secretário de Planejamento na gestão Waldez Góes, nos respondeu por escrito que a moratória ocorreu porque houve queda na arrecadação do estado e o governo teria priorizado o pagamento de outras despesas. Mas essa tese é falaciosa, não houve queda na arrecadação.”
Na quinta-feira 8, o procurador encaminhou dois ofícios para ouvir os ex-governadores Waldez Góes e Pedro Paulo Dias, que assumiu o estado quando Waldez se desincompatibilizou para disputar o Senado. “Os pagamentos deixaram de ser efetuados quando eles estavam no poder e só voltaram a ser quitados no atual governo. Estamos apurando qual foi o envolvimento deles nesse processo.”
CartaCapital não conseguiu localizá-los para uma entrevista. O diretório nacional do PP não soube informar o contato do ex-governador Pedro Paulo e, na representação estadual do partido, ninguém atendeu o telefone entre a terça 6 e a quinta 8. A equipe de Waldez pediu à reportagem para solicitar a entrevista com o ex-secretário de Comunicação do governo do Amapá Marcelo Roza, mas o assessor, que também coordenou a campanha de Waldez ao Senado, não atendeu o celular nem respondeu à mensagem deixada na caixa postal.
* Rodrigo Martins é repórter da revista CartaCapital há cinco anos. Trabalhou como editor assistente do portal UOL e já escreveu para as revistas Foco Economia e Negócios, Sustenta!, Ensino Superior e Revista da Cultura, entre outras publicações. Em 2008 foi um dos vencedores do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Acompanhe também pelo www.twitter.com/rodrigomartins0.
0 comentários:
Postar um comentário